Cada vez mais me convenço que a literatura que perdura, a ficção que perdura, é aquela que transmuta a violência do humano, com todas as suas metamorfoses implícitas. Para sermos, ser, mais suaves, uma violência passiva que é activa, o mundo possível da ficção, passiva na medida em que representa a nossa face, o nosso rosto. Activa, na medida em que representa nessa idealidade ficcional as revoluções da interioridade, convulsões únicas que fazem o mundo, o nosso, não outro. Nesta perspectiva, considero Camilo mais sublime que Eça. Para a renovação dos estudos camilianos. Tal é necessário. Ora, o que Camilo nos imprime nas suas novelas, nos seus folhetins, nos seus romances é, precisamente, essa violência do amor, essa violência da sensualidade amorosa que ultrapassa todos os tempos do mundo, que transporta o humano para um mundo que não é o dele e que, no fundo, acaba por ser o dele mesmo, ressalvando-se, acima de tudo, uma fenomenologia do amor com todas as suas virtudes e defeitos. As virtudes e o defeito do humano. O que Camilo nos propões não é a questão da felicidade: esta é um meio para aquilo que denomino a fenomenologia do amor. O humano, sempre o humano, as suas atitudes comportamentais. Para uma filosofia do sentimento, nas palavras de Paul Ricouer. Sem lamechices. Depois, Camilo é um mono-língua. Fidelizou-se ao seu princípio de uma mono-língua, que é sua, que é a nossa. Eça, por seu turno, é tri-língua, a sua (a de origem), a inglesa e a francesa. Triplicou-se. Camilo não. Camilo multiplicou-se, transmutou-se linguisticamente nas personagens que criou. Recriou dois mundos: o da sua interioridade e o da sua exterioridade. Exemplo, o céptico, o estóico e o epicurista Guilherme do Amaral. Também Pigmalião, porque não? Acima de tudo Pigmalião. Aliás, Camilo, ele próprio, na introdução apologética para a sua Divindade de Jesus, acaba por nos dizer duas coisas interessantes, das quais os camilianistas pouco ou nada dizem: i) "Contava com a graça divina para lutar e vencer, vencer-me a mim, o mais inexorável inimigo que ainda tive."; ii) "a fugir de mim próprio", isto é, quando Camilo se instaurava fora dessa graça divina fugia de si próprio. Entre uma interioridade inimizada consigo próprio e uma fuga interiorizada, o nosso autor transporta-se para a sua criação, nas personagens por ele idealizadas. Na continuidade do XI.
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